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Março

 

2013
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Tomaz Hipólito - reset_00
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(performance - one night only)



Pequenas epifanias quotidianas


O percurso subterrâneo de Tomaz Hipólito tem vivido num estranho limbo entre arte e arquitetura que perpassa pelas várias possibilidades que tem vindo a desenvolver, quer no uso do desenho, da fotografia, do vídeo, da performance ou da escultura. Nenhum destes nomes, no entanto, lhe serve muito bem, porque, em cada uma destas práticas artísticas, as suas regras de conceção e realização se regem por protocolos que lhe são estranhos: faz fotografia mas não é fotógrafo, interessa-se pelo espaço mas não é arquiteto, faz desenhos e pinturas mas não é pintor. O que reúne esta multiplicidade de procedimentos?


O ponto comum entre estas práticas é um interesse indisciplinado pela arquitetura que se converteu num interesse pelo espaço tomado de um ponto de vista que, ora é fenomenológico, ora é concetual (isto é, surge sob a forma da demonstração de uma ideia). Nos seus desenhos, esta preocupação começou por surgir a propósito da relação entre objetos e a sua sombra, o que é uma indicação clara sobre a relação com a fisicalidade da superfície de um determinado espaço entendido na sua materialidade. A sombra é a marca da invisibilidade (porque é a ausência de luz), mas a sua inscrição num suporte é uma confirmação da existência de um alvo, ou seja, de uma superfície que enclausura e define uma determinada espacialidade que autoriza a existência de um objeto que se denuncia na interposição em relação à fonte lumínica.


Esta preocupação com a forma como um objeto é perceptível porque existe na imanência de um espaço veio a conhecer diferentes desenvolvimentos no seu percurso. As esculturas que resultam da justaposição de objetos díspares recolhidos ao seu quotidiano e aos encontros furtuitos do dia a dia não existem enquanto obras senão no momento em que, numa situação de habitação, substituem um elemento do conjunto de peças que pertencem à idiossincrasia de um qualquer lugar. Frequentemente esse lugar é portador de uma ordem, mesmo que essa ordem seja a do espaço heteróclito que define um contexto sócio-económico. No entanto, estas esculturas, antes do processo de substituição lhes outorgar uma existência fenoménica, existem como objetos fotografados. O mal-entendido que a situação gera é particularmente curioso, porque os objetos existem como imagem antes de ganharem vida como objetos, o que só é possível pelo processo de substituição, mas cuja fugaz vida substituta só pode ter lugar novamente como imagem.


Há algum eco de Erwin Wurm neste processo de substituição, na produção de um eco da existência – o elo que une o interesse pelas sombras ao interesse pelos processos de substituição.

Mais curioso é atentar como esta linha de produção de metamorfoses, com toda a carga recursivamente presentificadora da figura do intruso e da inscrição que este gera, veio a transmutar-se na produção de um personagem que povoa lugares, já não como substituto, mas como entidade invasora, cuja estranha razão de pertença se situa ao nível duplo da comprovação da existência própria e à comprovação do lugar enquanto tal. Esse foi o caminho das obras que desenvolveu a partir da residência que efetuou em Nova Iorque na Residency Unlimited, em Brooklyn e aos projetos que aí desenvolveu. Neste período recente (em 2011), o trabalho sofreu uma conversão em direção ao espaço urbano, passando da dimensão objetual para a escala da cidade, nomeadamente com o projeto que realizou na Emily Harvey Foundation, no qual surgia, pela primeira vez, a relação do corpo do próprio artista com o espaço definido do terraço de topo de um edifício e dedicando-se à forma como a cidade surgia, a partir daqui, com uma escala relacional. A exposição, aliás, tematizava a questão da invisibilidade e do apagamento, quer na obra videográfica quer nos desenhos, e veio a dar lugar a um desenvolvimento posterior, o surgimento de fotografias compósitas de um personagem (o artista, numa tradição de auto-representação que perpassa a arte portuguesa dos últimos cem anos) que se multiplica em diferentes escalas num jogo de espelhos que parece também remeter para a figura do duplo, ou döppelganger. Esta estrutura de mapeamento de espaços (agora migrados para uma série de auto-representações no interior de ateliês de arquitetura, de Steven Holl a Aires Mateus) é produzida através da constituição de um léxico de gestos, alguns pertencentes à história da representação modernista do corpo (das imagens dos ballets mechaniques até à iconografia de Almada Negreiros), outros evocadores das performances filmadas de Bruce Nauman, unificados pelo uso de um uniforme impessoal, branco ou negro que despersonaliza o artista, transformando-o numa métrica corporal da espacialidade de lugares definidos.


A performance que agora se apresenta no espaço da Galeria Cristina Guerra representa uma outra forma de concretização da relação de mapeamento do espaço. Numa descrição sintética, o público é levado a entrar no prédio da galeria e, neste, convidado a passar por uma pequena porta para uma escada de serviço completamente obscurecida, descendo até uma outra porta na qual entra num espaço desconhecido. A escuridão não permite a orientação no espaço, ao qual só é dado dimensão por um som de algo a ser serrado por alguém. Pontualmente, luzes ténues que vão sendo desencarceradas aparentemente pela atividade que os espectadores ouvem, indicam cantos. O percurso continua para, depois de subir mais um lanço de escadas, se deter e as luzes, já acesas, revelarem que, finalmente estamos no espaço da Galeria Cristina Guerra, ao qual acedemos por um caminho insólito e desconhecido por todos.


Este périplo serviu também para espaço ser juncado dos despojos da performance (pelo menos da parte da performance realizada pelo artista, já que o processo coletivo de estranhamento e revelação do espaço é coletivo e partilhado pelos espectadores). Estes despojos configuram esculturas informais e de estatuto dúbio, não sendo claro se são a memória da ação ou se pretendem ter autonomia enquanto objetos.


A tipologia deste trabalho possui uma memória de Robert Morris – ou ela pode ser convocada – como uma inversão do processo da obra seminal que é Box with the sound of its own making, de 1961 (uma escultura que, de facto, é o resultado de uma ação gravada, a de construir a própria caixa, sendo colocado o gravador com o registo sonoro dentro do contentor cuja construção originou o som). Aqui, o som é ouvido em tempo real e a simultaneidade é gerada na memória do espectador quando o espaço é também revelado como um espaço familiar. O processo de estranhamento é, no entanto, essencial, porque é ele que cria a disponibilidade para o reconhecimento, progressivo ou gradual e para a vivência da situação como um acontecimento.


Nos desenvolvimentos recentes do trabalho de Tomaz Hipólito, a descoberta do espaço, ora irónica ora quase candidamente fascinada, é o acontecimento recorrente. Muitas vezes essa descoberta é uma micro-ficção que pontua uma ordem que a transcende – uma paisagem nos Açores, Death Valley, os telhados de Nova Iorque, outras vezes é o léxico de um gesto quase didático, ou revelador de uma aprendizagem metódica, que parece colidir com um determinado estado-de-coisas, como acontece nas imagens dos ateliês dos arquitetos.

Em qualquer dos casos, é de pequenas epifanias que se trata.

Que mais interessa?



Delfim Sardo

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