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27

 

Março

 

2025
10

 

Maio

 

2025
Rui Toscano - Ra

No romance Judas, o obscuro, publicado em Londres em 1885, Thomas Hardy narra a vida e os dilemas de um jovem oriundo das classes mais humildes da Inglaterra Vitoriana. Criado sob o peso do trabalho rural, o protagonista sonha com a redenção pela via do saber e do estudo. A sua sede de emancipação, construída na solidão do autodidatismo, irrompe a partir de um gesto in-augural: do cimo de uma colina, ao entardecer, Jude descobre o brilho impreciso de uma cidade distante — berço de uma universidade antiga e prestigiosa — que promete abrir-lhe as portas do conhecimento e acolhê-lo como discípulo. Jude regressa amiúde a essa colina, em busca da auréola luminosa que, na névoa crepuscular, suavemente dissolve a escuridão da noite, desvelando o magnífico sonho da cidade longínqua — visão ao mesmo tempo fantástica e tangível, que alimenta o seu anseio pela aprendizagem: «Como aquela auréola fora para os seus olhos, ao contemplá-la um quarto de hora antes, assim era aquele ponto para a sua mente enquanto avançava pela noite escura. — ‘É uma cidade de luz’, disse para si. — ‘Lá cresce a árvore do conhecimento’, acrescentou alguns passos adiante. […] — ‘É o lugar perfeito para mim.’»


A linguagem de Rui Toscano convoca arquétipos culturais distantes e ancestrais — não para os reconstituir no presente com precisão, mas para resgatar o eco do seu valor simbólico. Na sua prática, tem perseguido de forma persistente uma síntese entre os elementos concretos da história cultural da humanidade e a inspiração cósmica e transcendente que os atravessa. Essa busca tem-se materializado numa tradição visual minimalista, que sublinha a relação entre a luz e a sua faculdade de se manifestar através do tempo e do espaço, como instrumento de conhecimento e ponte para realidades mais profundas. Neste percurso, a luz assume um papel nuclear — não apenas enquanto meio pulsante de revelação e inspiração existencial, como a ânsia de Judas na narrativa de Hardy sugere, mas também como elemento estruturante da própria obra. Toscano explora a capacidade escultórica da luz para moldar o espaço e influenciar a perceção ao longo do tempo, operando nos limites entre a presença e a ausência, a manifestação e a dissolução.


Na sua nova exposição individual na galeria Cristina Guerra Contemporary Art, o artista amplia essa investigação, inspirando-se na figura de Rá, uma das divindades maiores do antigo Egipto, símbolo do sol no seu zénite. Rá não era apenas a personificação da luz solar, mas uma força cósmica que regulava o ciclo da vida e da energia no universo. Segundo a teologia egípcia, a sua viagem diária pelo céu e pelo submundo espelhava o ritmo eterno da criação, da morte e do renascimento. O sol, no seu percurso do amanhecer ao entardecer, tornava-se medida do tempo, o princípio da ordem da realidade e ponte entre o visível e o invisível.


Toscano apropria-se deste conceito — tão distante e volátil que quase roça o abstrato — e verte-o em formas concretas e precisas de uma experiência sensorial. No centro da exposição, encontramos quatro desenhos projetados sob a forma de imagens luminosas, cuja tonalidade e intensidade cromáticas variam consoante a luz natural que invade o espaço expositivo. As figuras geométricas que compõem estas obras — dois retângulos parcialmente sobrepostos, um losango atravessado por dois triângulos opostos, três círculos de tamanhos crescentes e uma meia esfera seccionada — surgem como sinais de pureza euclidiana extrema, despidos de qualquer narrativa. Contudo, é precisamente essa essencialidade que os mantém abertos a múltiplas leituras: podem evocar mapas estelares, diagramas astronómicos ou modelos de corpos celestes suspensos num momento singular da sua vida cósmica. A ausência de referências concretas permite que estas formas se mantenham permeáveis à sugestão do primordial, como construções ancestrais ou monumentos esotéricos perdidos no tempo e no espaço.


Se estas obras refletem, em última instância, sobre a luz enquanto expressão da forma, funcionam também como veículos de uma intuição mais ampla, que roça o domínio do sagrado com o rigor de uma espiritualidade laica. Toscano parece dialogar com conceções antigas da luz — não apenas como fonte de iluminação, mas enquanto princípio fundacional do universo. Na filosofia medieval do século XII, a noção de «metafísica da luz» traduziu-se na visão de pensadores como Robert Grosseteste ou São Boaventura, que viam na luz a primeira forma da matéria, a substância a partir da qual o mundo era ordenado e carregado de sentido. Assim entendida, a luz transcende o fenómeno físico, sendo antes um princípio ontológico essencial, gerador e transformador da realidade — e, com ela, da própria condição humana. A própria ideia do humano era moldada por essa visão, inscrita numa dimensão teológica e criatural da qual emanavam a razão e a realidade. 


De modo análogo, nas obras de Toscano, a luz não é mero fenómeno físico, mas uma entidade geradora de espaço e significado, reverberando um valor meditativo suscetível de uma leitura íntima e pessoal. A contínua variação do tom das projeções, sob o efeito da luz natural, introduz um elemento de instabilidade que evidencia a relação entre tempo e perceção. As formas não se fixam; transformam-se com as mutações luminosas, evocando o caráter cíclico dos fenómenos cósmicos, ainda antes da efemeridade da existência humana. As projeções de Toscano sugerem uma via de contemplação e desprendimento interior, numa espécie de ascetismo secular. A evocação de geometrias abstratas e indefinidas, imersas na constante mutabilidade da luz, convoca a imagem de um lugar onde as dimensões ordinárias do tempo e do espaço se transcendem, e onde os objetos que habitam a memória e a vida dissolvem os seus contornos. Abre-se assim um cenário onde se pressente uma hipotética cidade de luz — aquela mesma que Jude, no romance de Hardy, buscava para aceder à sua vocação íntima, perseguida com rigor e força própria. 


A exposição completa-se com quatro pinturas de formatos variados, cada uma realizada numa cor primária. Ao contrário das projeções, estas obras concentram-se inteiramente na intensidade da cor e no seu domínio ótico. Todavia, o processo compositivo inicial de Toscano para estas peças — que partiu de um minimalismo inspirado cosmologicamente e que tem caracterizado uma parte significativa da sua prática pictórica — evoluiu ao longo de semanas de trabalho, incorporando gradualmente elementos naturais inspirados em formas vegetais na abstração da superfície cromática. Mais significativo ainda é o surgimento, pela primeira vez, de figuras humanas — como que espectadores das próprias paisagens pictóricas que emergem na tela. As obras perdem assim a sua anterior evanescência, ganhando profundidade imaginativa e uma dimensão narrativa. Esta evolução ecoa um percurso anterior da investigação de Toscano, iniciado nos anos 90, com a recolha de livros de ficção científica de várias partes do mundo, publicados até à década anterior, fotografando as suas capas e reinterpretando-as através de projetores de slides. A estética desses romances de ficção científica dos anos 1960 a 1980 refletia um caleidoscópio de estilos icónicos, entre o Cubismo e o Surrealismo — imagens criadas por artistas que operavam entre os domínios da ciência e do fantástico. 


É precisamente essa interseção de campos e territórios que constitui uma chave para compreender a prática de Toscano, que explora planos temporais sobrepostos e inidentificáveis, oferecendo olhares sobre épocas culturais distantes, aspirações tecnológicas obsoletas e paradigmas científicos distintos dos atuais. As suas pinturas funcionam como máquinas do tempo imprevisíveis, instrumentos suspensos de perceção, que oscilam entre o instante presente e os ecos de mundos remotos, onde o ritmo é ditado por uma experiência que mergulha nas profundezas do tempo e da memória cultural coletiva. 



Luigi Fassi 

Março 2025 

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