AROUND THE WORLD / VOLTA AO MUNDO (2020), é o trabalho de Lawrence Weiner que dá o título a esta exposição na Galeria Cristina Guerra, que reúne cinco obras que parecem estar ligadas por uma ação e uma ideia. A ação mais próxima que une estas obras é a navegação. A ideia a que me refiro é a linha que divide o globo terrestre em duas metades supostamente iguais e que tem no seu nome a noção de igualdade. O Equador é uma das referências principais quando pensamos em geografia, climatologia e demografia; é uma ideia porque não tem existência material, é uma linha imaginada à qual voltarei adiante com mais detalhe. Literal ou metafórico, todo o tipo de navegação requer pontos de referência através dos quais seja possível aferir as diferentes posições que o navegante vai ocupando durante a sua deslocação, para que possa saber onde está e para onde vai. Navegar é uma metáfora da vida, e não apenas para aqueles que vivem na cercania do mar. Navegar é uma forma de movimento volitivo com um propósito, com una finalidade determinada mesmo quando ela é precisamente não ter rumo fixo. Por extensão, navegar é um verbo que se aplica também a deslocações feitas em terra firme e, primeiro pelas mãos da ficção científica e depois graças ao desenvolvimento tecnológico, habituamo-nos a usá-lo para descrever viagens siderais no espaço interplanetário.
Na navegação pré-digital, as estrelas era usadas como sistema de referência e posicionamento na ausência de outras informações visuais, como por exemplo no alto mar, num deserto, ou numa área visitada pela primeira vez. À medida que os instrumentos foram aumentado em complexidade, com a invenção da bússola e do astrolábio, o mesmo aconteceu com a quantidade e qualidade das observações, assim como com o desejo humano de viajar, levando ao surgimento de novas convenções que facilitavam as deslocações e transformavam o planeta num lugar finito, sujeito a novas gramáticas de divisão e marcação. O navegante tem interesse em saber sempre onde está e em que direção dirigir a sua embarcação.
As coisas associadas à navegação fizeram parte dos universos, das muitas estruturas traçadas e nomeadas por Weiner ao longo de seis décadas de produção de uma obra que é tão vasta quanto é variada e consistente. Nas suas obras, desde 1968, há um jogo de responsabilidades que flutuam entre as figuras do artista-produtor e do recetor-utilizador da obra, figuras que, sem se confundirem muito uma com a outra, parecem negociar inconscientemente a produção de significados ou valores. A obra e o seu destinatário estão ambos sujeitos às condições do tempo e do local em que a obra é apresentada. Mesmo assim, o aqui e agora não produz imaginários fixos e imutáveis, muito pelo contrário. Em 1968, Weiner formulou pela primeira vez a sua «declaração de intenções», com a qual estabeleceu a moldura para a receção (atrevo-me a dizer a «operação») do seu trabalho, que desde então define como «linguagem e os materiais a que a obra se refere». A declaração de intenções não supõe uma alteração do papel do artista, mas afeta significativamente a forma como conceptualizamos a obra (que pode ou não ser fabricada) e o seu recetor (mais comummente chamado de «espectador» ou «observador») . Aqui, o recetor tem a liberdade e a responsabilidade de conferir sentido ao trabalho, ajustando-o ao que entender ser adequado às suas circunstâncias. Portanto, estas linhas que está a ler não pretendem descrever os pensamentos do seu autor ou as intenções do artista no momento em que este cria a sua obra. As obras de Lawrence Weiner não são partituras para serem interpretadas de uma maneira específica; cabe ao recetor decidir o que fazer com elas. Weiner tem sido uma figura importante na desmistificação e desmantelamento das hierarquias que definiam artista e obra de arte como separados da realidade de todas as outras entidades e indivíduos. “THE ARTIST’S REALITY IS NO DIFFERENT THAN ANY OTHER REALITY.” A noção de «artista génio» deu lugar à de «artista como produtor», como foi descrita por Walter Benjamin em 1934, uma ideia que propõe repensar completamente o papel do artista, posicionando-o como apenas mais um membro da sociedade cuja atividade se integra numa indústria e é definida pelos meios da sua produção.
A palavra navegação remete-nos para o uso da vela e para a domesticação dos ventos, pondo-os ao serviço de uma vontade ou de um rumo. A estrela polar, os ventos, o mar, a flutuação, as ondas, o horizonte… aparecem em muitas obras de Weiner e transportam-nos para visões do marinho e para o universo da navegação, ambientes muito diferentes dos contextos urbanos e dos territórios sólidos que abundam sobretudo nas obras das primeiras décadas do seu percurso. Para Weiner, a condição de navegante parece surgir naturalmente, um estado primigénio ao qual procura sempre regressar. O artista tem utilizado uma grande variedade de suportes para colocar e apresentar a sua obra, das páginas de um livro às paredes de uma galeria ou outra instituição artística, ou utilizando códigos que pertencem inerentemente ao espaço público. É autor de desenhos etéreos que parecem flutuar no ar ao invés de capturados pelo papel, e de obras públicas duráveis que recusam o estatuto da monumentalidade. Weiner realizou filmes e vídeos, e produziu canções que funcionam como suporte para as suas peças. Adjacente à permanência e durabilidade dos materiais e suportes tradicionais, fez também uso de materiais e condições completamente efémeras. Junto com as palavras, o artista recorre regularmente a elementos gráficos que, convivendo com as primeiras, chegam por vezes a substituí-las criando espaços de compreensão aproximada e amplas possibilidades de jogo que o espectador — adulto, criança, especialista ou neófito — pode utilizar para jogar ou encontrar uma utilidade distinta para a obra.
STARS DON’T STAND STILL IN THE SKY (1990), é um bom exemplo, uma das numerosas obras que nos devolve ao mundo da navegação e do marinho . Foi formulada e produzida em diferentes formatos, suportes e variações ao longo de décadas e ajuda-nos a ver AROUND THE WORLD / VOLTA AO MUNDO com perspetivas mais amplas. Tanto a navegação como a ética liberal (pelo menos desde Kant), baseiam-se na crença de que há um conjunto de valores constantes que, tal como as estrelas, supomos manterem-se imutáveis ao longo do tempo; uniformes, eternos e inamovíveis. Por muito que mudem as coisas humanas, esses valores e referências, diz-se, permanecem inalteradas e poderemos sempre, a qualquer momento, apoiarmo-nos nelas. Quando a evidência sensível de que o sol se move todos os dias de este para oeste deu lugar ao postulado que descreve a rotação diária do globo em torno do seu próprio eixo — supondo o mundo como uma esfera — foram necessárias ciência e convicção para que esta ideia vingasse, uma vez que era contrária aos interesses dos poderes de então. Argumentar e defender a noção de que a terra não só não era plana, como não era o centro do universo, acabou por custar bem mais do que uma vida. Em 1519, Fernão de Magalhães iniciou a viagem que, concluída por Juan Sebastián Elcano em 1522, seria a primeira circumnavegação do planeta. A viagem foi feita com o propósito de aumentar as riquezas e expandir as propriedades daquele que era provavelmente o maior império colonial da época. Esta expansão das riquezas e propriedades do navegador e do seu patrono produziu dano e perda nas populações indígenas, que trocaram as suas vidas, liberdades, propriedades e riquezas por doenças desconhecidas, cativeiro e submissão ao tribunal da Inquisição, entre muitas outras coisas, que em muitos casos significaram a sua aniquilação.
AROUND THE WORLD / VOLTA AO MUNDO é acompanhada por quatro outras obras nesta exposição. Se é verdade que poderíamos considerar estas cinco obras como uma unidade, como uma equação na qual a ordem dos fatores não altera o produto, quero convidar o leitor a vê-las sem induzir ou pressupor nenhuma relação ou ordem específica. PLACED ABOVE THE EQUATOR / COLOCADO ACIMA DO EQUADOR, PLACED BELOW THE EQUATOR / COLOCADO ABAIXO DO EQUADOR, TO THE LEFT OF THE EQUATOR / À ESQUERDA DO EQUADOR, TO THE RIGHT OF THE EQUATOR / À DIREITA DO EQUADOR remetem-nos para uma divisão do planeta num duplo sistema binário que pressupõe, mas não depende do estabelecimento de pontos cardeais. Postulando um «acima de» e um «abaixo de», um «à direita de» e um «à esquerda de», a obra convida-nos a considerar una orientação alternativa a um mundo estático no qual o norte está sempre acima e o sul abaixo. Os pontos cardeais não foram criados com o objetivo de estabelecer uma hierarquia, mas acabaram por representá-la no discurso coloquial . Não são as estrelas que estabelecem a posição que cada um ocupa, isso cabe a quem usa a grelha e aos sedimentos da história. Evitaremos o debate sobre se o planeta Terra equivale extensiva e exclusivamente àquilo a que chamamos Mundo, ainda que por vezes misturemos os conceitos quando falamos. Sabemos que o nosso planeta e os humanos que aqui vivem são apenas uma pequena fração, feita de equilíbrios frágeis e desacordos fáceis, de um universo infinito. Em qualquer caso, hoje estamos cientes de como o nosso comportamento como espécie afeta todos os membros e constituintes deste planeta-mundo, setenta por cento do qual está coberto por água, uma extensão que é na sua maioria navegável. Movemo-nos sobre a pele do globo olhando melancolicamente para as estrelas acima de nós e temendo o que se esconde nas profundezas sob os nossos pés. Acima e abaixo são expressões hierárquicas que, por exemplo, num contexto sexual, podem ser usadas com uma ampla gama de implicações. Cada um pode determinar o «seu» para cima, para baixo, direita, esquerda, dentro e fora… desde que seja o centro do seu próprio universo e não esteja à mercê da autoridade de outros.
Apresentada pela primeira vez em 1968, a declaração de intenções de Weiner situa o resultado final da obra e os seus significados nas decisões tomadas, a cada momento, pelo recetor-espectador-leitor. A ideia de que a obra é completada pelo recetor tem as suas origens na literatura: o texto é completado pelo leitor no momento da sua leitura. Por esta razão, as obras de Weiner nunca são normativas; não contêm imperativos, não dizem a ninguém o que fazer, mas antes transmitem a possibilidade de determinar o que é possível fazer com elas. As obras expostas hoje são baseadas em particípios ou orações sem verbo e o leitor-recetor-utilizador é livre para se posicionar em qualquer lugar «do mundo». Além disso, a obra não é indicativa do que está acima ou abaixo da linha imaginária que divide o globo. Em relação ao Equador, podemos posicionar nós próprios ou qualquer outra coisa. A obra convida-nos a tomar consciência da finitude do mundo, da nossa liberdade sem limites e do desejo de navegar.
Sendo que é uma linha circular, sem começo nem fim, e horizontal por convenção, estar à direita ou à esquerda do Equador soa como um oximoro, algo próximo do absurdo. Mas a obra também nos pede para questionar as convenções, abstratas ou concretas, da geografia, isto é, da divisão do mundo. Nas representações da Terra, o que é acima ou abaixo depende do que foi estabelecido pelos primeiros navegadores ocidentais na descrição das suas viagens, muitas vezes rumo a oeste, em direção ao sol poente. Os marinheiros árabes que, na mesma época, navegaram rumando a leste, em direção ao sol nascente, produziram os seus próprios «acima» e «abaixo».
A disposição das obras no percurso da exposição, no espaço da galeria, também suscita leituras mais entrelaçadas. AROUND THE WORLD / VOLTA AO MUNDO recebe o espectador da grande janela que dá para a rua. A versão em inglês da obra aparece em amarelo, na linha superior, e a versão em português, a azul, na linha inferior, criando breves espaços verdes nas áreas de intersecção das letras das duas linhas. Nesse momento, o transeunte é informado do destino da viagem: o mundo inteiro, a sua circumnavegação. Uma vez dentro da galeria, as obras parecem emparelhar-se respeitando um ritmo e uma sequência: a azul e à direita no sentido da entrada no espaço temos TO THE LEFT OF THE EQUATOR / À ESQUERDA DO EQUADOR, que dá lugar ao vermelho PLACED BELOW THE EQUATOR / COLOCADO ABAIXO DO EQUADOR. Na parede adjacente, à esquerda e no sentido da entrada, as letras vermelhas de TO THE RIGHT OF THE EQUATOR / À DIREITA DO EQUADOR precedem as azuis de PLACED ABOVE THE EQUATOR / COLOCADO ACIMA DO EQUADOR, que por sua vez se adapta à parede quando ela se dobra numa esquina de quase noventa graus. Os espaços de intersecção entre as letras nas linhas superior e inferior são desprovidos de cor e aparecem em branco.
O trabalho de Lawrence Weiner não é comparável à poesia. Quando o artista começou a consolidar a sua obra no final da década de 1960, as relações entre as áreas criativas no contexto das artes visuais — os mass-media (fotografia, cinema, ...), o teatro, a dança, a música erudita e popular, e as formas mais tradicionais e experimentais da poesia — fluíam umas nas outras e formavam vigorosas correntes que alimentavam o vasto oceano a que chamamos arte e que se renova continuamente com novos fluxos que vêm substituir o que se evapora no ar. Weiner chama a atenção para uma diferença decisiva entre o seu trabalho, que usa «linguagem e os materiais a que a obra se refere», e a poesia: a poesia é intraduzível. Ciente de que não só pela sua especificidade linguística, mas também pelo desejo de não priorizar a receção da obra vinculando-a à singularidade de uma língua, Weiner sempre combinou o inglês e a(s) língua(s) do local onde o trabalho é exibido. O artista afirma categoricamente que a criação das suas obras não está vinculada a um lugar específico, não são site-specific, mas podem ser recebidas e compreendidas num contexto específico. Cada lugar, com a sua própria linguagem, é um espaço de significação única. Nos diversos meios de comunicação em que a obra pode aparecer, a condição da sua existência está ligada à sua publicidade (publicness), ao facto de ser livremente acessível de uma forma ou de outra. As páginas de um livro, as paredes de uma galeria ou museu, o chão de uma rua, a superfície de um cartaz, a projeção de luz através de uma película de celuloide em movimento, tudo pode ser usado como meio, suportes tão válidos como a moldura de uma pintura ou o plinto de uma escultura.
O Equador divide o globo terrestre em duas metades, iguais em teoria, mas profundamente desiguais na realidade. Dois mundos diferentes tocam-se no Equador, a linha cujo nome significa o oposto do efeito que provoca. Mas estar acima ou abaixo é uma função da nossa vontade, e é dessa vontade que emana a nossa capacidade de rebelião, a nossa necessidade de partilha e o nosso desejo.
Bartomeu Marí, 2021
Do termo latino equator, “aquele que iguala”.
2 1. The artist may construct the piece
2. The piece may be fabricated
3. The piece need not be built
3 Each being equal and consistent with the intent of the artist the decision as to condition rests with the viewer upon the occasion of receivership
“NOTES FROM ART” (1982) in HAVING BEEN SAID. WRITINGS & INTERVIEWS OF LAWRENCE WEINER 1968-2003. Edited by Gerti Fietzek & Gregor Stimmerich, Haatje Cantz Publishers, 2004, p. 130.
4 Alexander Alberro faz notar outro desses exemplos: “FACTORS IN THE SCOPE OF DISTANCE (1984), for example, features drawings that do not illustrate a particular work but show paradigmatic ships on the horizon. The vertical lines indicate a cartographic method of determining distance and the horizontal elements render ships at sea as they appear on the horizon” Alberro, A & Zimmerman, A.: Ibid p. 55.
5 Se o eixo da terra se inclinasse o suficiente – a inclinação do eixo terrestre foi calculada em 1917 no valor de 23’’17’— o Equador erguer-se-ia na vertical, se continuássemos a respeitar as perspetivas de representação a que estamos habituados. A oscilação do eixo, cujo nome técnico é o apelativo Obliquidade da Eclíptica, cria as estações do ano e pontua o passar dos anos a cada revolução em torno do sol.