Constatar que a língua — seja escrita, falada ou desenhada — é já substância antes de ser utilizada como tal para se tornar material artístico, permite, pelo menos, pôr em relevo a sua plasticidade. Sobretudo, permite constatar que não podemos escapar a uma forma, qualquer que seja a língua, a época ou a cultura. Logo surge outra observação inerente ao que se passa de imediato, aqui e agora, que diz respeito à reflexividade da língua: parece menos evidente que um material gráfico e sonoro seja reflexivo, isto é, que se possa referir à sua própria forma e, simultaneamente, a elementos que não estão totalmente contidos nela. Esta espantosa capacidade dos signos linguísticos de se referirem a si próprios e a coisas em nada comparáveis aos mesmos é, seguramente, bem conhecida e banal, mas não deixa de ser espantosa. O maravilhoso é devido ao que, em linguística, se chama a transparência e opacidade do signo: por um lado, quando prestamos atenção aos caracteres e às letras não acedemos realmente ao significado; por outro, quando estamos concentrados no significado, esquecemos a dimensão material. O signo esconde e descobre a coisa significada. No caso de obras de arte onde prevalece a função poética da língua essa duplicidade é fortemente reduzida e faz-nos hesitar constantemente entre o sonoro, o visual, a matéria e a ideia.
Na experiência imediata – contrariamente ao que geralmente se diz, mas sem provocação – as obras de Lawrence Weiner são visuais. O formato, a escala, a disposição, as cores, os espaços, as distâncias, tudo isto nos remete para uma situação onde predomina o material, a fisicalidade, o concreto. Ou, mais exactamente, uma experiência corporal. Paradoxalmente, e sempre na experiência imanente, a corporalidade não está nas matérias mas no que dizem essas formas. Só em presença tangível das obras é que nos podemos aperceber que a relação intelectual (supostamente a única) reside, em última instância, no nosso corpo. Bastaria pensar em palavras ou letras completamente desconhecidas e indecifráveis para compreender que, sem incorporação, coisa que se aprende, não pode haver compreensão. Por uma razão simples : a língua, que é feita de matérias, formas e texturas, modela o nosso ser, o nosso corpo, o nosso ouvido, a nossa sensibilidade. E esta modelação, ou melhor dizendo, esta plasticidade não pode ser só mental.
Os artefactos de linguagem ou de imagens que produzimos valem como representações de qualquer coisa e, uma vez atingido o representado, desaparecem ou são desvalorizados porque, segundo um curioso critério dualista, o sensível possuí um valor menor comparativamente ao inteligível. Sem cair no excesso inverso de um matérismo ou de um fisicalismo, a poesia concreta, visual e sonora põe em relevo o sensível e o perceptível nessa presença muito concreta das formas do texto, dos sons, das palavras, e assim, a corporalidade, fazendo com que a linguagem seja um acto de percepção. As obras de Lawrence Weiner são obras em situação concreta ou, mais precisamente, obras em relação indiciária ou indexical com o espectador, no aqui e agora da relação psicofísica; e é nesse sentido que a experiência perceptiva não pode ser unicamente intelectual mas é sobretudo corporal, integrando também os sons e a temporalidade produzidos pelo que estamos vendo/lendo. Esse campo verbal-vocal-visual possui uma vertente ideal mas inevitavelmente ligada à corporalidade da língua. Dirijo a minha percepção na língua e através da língua porque o acto mesmo da percepção também é constituído de linguagem materializada. Mas a relação que temos ao entrar no espaço expositivo é justamente uma materialização que não é imediata por que, quase simultaneamente, leio palavras que reenviam para parâmetros indiciais – «colocado/placed», «para chegar/ to reach», «seja onde for/wheresoever», «here is it not», «debaixo do sol/under the sun» – que estão aparentemente ligados concretamente à posição literal das palavras e das frases nas paredes assim como à situação do leitor/ espectador – e, ao mesmo tempo, poderiam falar de situações outras, ausentes, que não estão referidas aqui e agora. As paredes onde se lê, como num reflexo, «Here is it» e «Here is it not», representam perfeitamente essa situação, por que se trata precisamente desta situação, onde se compreende que o “here» é literal (estas palavras nesta parede) e a propósito de qualquer coisa que está situado algures noutro contexto.
O traço à volta das frases chama a atenção para algo que não devemos esquecer ou sublinha que o que se lê está e não está presente. Ou, como dito anteriormente, é transparente e opaco. Não se trata de invisível, de inacessível ou de ininteligível, trata-se do não-acesso completo e total (transparência) aos significados. Porque não posso impedir-me de pensar que «here is it» também se pode referir à outra parede onde vejo pintado «Here is it not», que esta última frase reenvia para a outra parede, e as duas frases para a inteira situação da exposição, para o prédio, talvez para a rua, para um contexto indefinido e indeterminado que não pode ser, por essas razões, exaustivo.
Tudo o que está pintado nas paredes mediatiza o nosso acesso às dimensões, escalas, cores, aos aspectos visuais, às situações próprias das palavras e das frases – tal como «entrecruzado/crisscrossed»; «placed on either side of the light/colocado em ambos os lados da luz» –, no sentido em que o que é lido nomeia, pelo menos – se não explica ou interpreta –, a experiência que está a decorrer. Ora as nossas experiências são em grande parte formadas pela língua que indica, designa, aponta para o que se está a passar: por exemplo, o facto de estarmos a ler qualquer coisa onde se trata da situação na qual estamos precisamente a fazer o que afirmam e designam essas mesmas palavras e frases. Não estamos, enfim, a ver e perceber a realidade, mas o que dizem essas frases a seu propósito. Imaginemos que sem mudar nada no dispositivo a não ser a cor (aqui em preto), por exemplo o vermelho ou o verde, a experiência que nos faz pensar numa coisa (indeterminada) que está «colocado em ambos os lados da luz» e uma coisa que está «placed on either side of the light» não seria certamente a mesma, porque a simples modificação de cor (pelos códigos ligados a uma cultura) far-nos-ia, não só ver ou imaginar outra coisa, mas não se referiria à mesma coisa — se é que se trata de uma «coisa». O que está «colocado» ou «placed» pode ser, evidentemente, palavras e letras, mas pode também ser a cor (o preto), ou o tempo e o espaço -- a começar pelo simples espaço da parede, o tempo de leitura/visão, em suma, o sistema de referências necessário para cumprir esta experiência e qualquer experiência em geral.
Se falamos suficientemente duas ou três línguas, sabemos (por experiência) que as línguas nos situam em espaços e tempos diferentes, situam o nosso corpo e a nossa mente em imaginários diversos, e que, por assim dizer, quando vivemos dentro ou a partir de uma língua não temos o mesmo corpo que quando estamos a exprimir-nos e a actuar noutra língua. Por isso, as obras do Lawrence Weiner também são, entre muitas outras coisas, representações do corpo.
Jacinto Lageira
O artista agradece a Jacinto Lageira, José Roseira e Delfim Sardo, pela admirável coragem que demonstraram na tradução deste trabalho para português.