João Paulo Feliciano (n. 1963) apresenta, na Galeria Cristina Guerra
Contemporary Art, um conjunto de trabalhos evocativo da sua relação
enquanto director artístico do recinto do festival NOS Primavera Sound, que
tem lugar no Parque da Cidade do Porto. Esta mostra chama-se
precisamente Primavera. Não surpreende o cruzamento das artes visuais,
com o design e com a música, já que Feliciano se assume como músico e
como artista visual. Aliás, no passado integrou projectos musicais,
como Tina and the Top Ten e No Noise Reduction, ou, mais recentemente, o
enérgico e contagiante Real Combo Lisbonense.
Ao longo do espaço da galeria, vão-nos sendo apresentadas peças que
testemunham esta relação. À entrada, de um lado, algumas imagens de
arvoredo, potencialmente evocativas do Parque da Cidade do Porto; de
outro, um amontoado de letras com encaixes de luzes, similares às que
recebem o público na sua chegada ao recinto musical. Convém dizer que
funcionam francamente bem neste contexto de espaço aberto, com a
elegante e fluida movimentação das luzes. Já no contexto de galeria, a sua
função operacional e o envolvimento estético alteram-se, como seria
expectável. A peça que mais se destaca na exposição em causa é uma mesa,
com tampo de vidro e com luzes amontoadas no interior. Recorda as
“acumulações” de Arman, genericamente ligadas ao movimento do nouveau
réalisme, que justamente se ancorou na proposta de “novas abordagens
perceptivas do real”.
Detenhamo-nos nesta ideia. Em Primavera faz-se alusão a um espaço
exterior e extenso que é, a seu modo, e mais ou menos conceptualmente,
transposto para um espaço de galeria, naturalmente fechado e circunscrito.
Pode não ser tarefa fácil. E evidentemente que levanta problemáticas de
funcionamento ao nível de contexto, de escala, e até mesmo do desejo e do
potencial encantamento pelo próprio objecto. Nos últimos tempos, temos
observado esta prática por diversas vezes e com vários artistas: a colocação
na galeria de peças/objectos originalmente concebidos para o exterior e com
outra intenção de fruição e de escala. Trata-se, contudo, de uma opção
artisticamente legítima e objectualmente válida apesar de, eventualmente,
menos encantatória. Talvez, por outro lado, não tenha que o ser. Uma outra
interpretação deste movimento – de fora para dentro, chamemos-lhe –
poderá ter que ver justamente com o desmaterializar do objecto inicial,
propondo uma nova “abordagem perceptiva” – recordando as palavras de
Pierre Restany e dos seus companheiros – do real.
No elucidativo texto de Simón Marchán-Fiz (Del arte objetual al arte de
concepto, 1990), a questão da superação da obra de arte enquanto objecto
estético tradicional pode entender-se justamente como «(...)
uma desestetização do estético, entendida como esta apropriação de
realidades não artísticas tão característica desde a experiência de M.
Duchamp. Trata-se de uma recuperação teórica e prática de aspectos extraartísticos,
incluindo os aspectos antropológicos e sociológicos». Este ponto
importa-nos. A exposição de João Paulo Feliciano ganha corpo
precisamente e, também, porque não se trata apenas de objectos isolados,
mas de pedaços de um trabalho operativo mais vasto e que possui uma
componente importante: é concebido para criar ambientes para fruição das
pessoas que se deslocam ao Primavera musical. Um outro exemplo desta
legítima “desestetização” foi encontrado por Harold Rosenberg, quando
entendeu (1972) que a “arte desestetizada” seria o mais recente dos
movimentos de vanguarda, nomeadamente patente nas obras de Barry
Flanagan, Bruce Nauman, Carl André, Denis Oppenheim, Walter de Maria,
entre outros.
As peças apresentadas por João Paulo Feliciano na galeria não são objectos
esteticamente pouco apelativos, esclareçamos, contudo, e como deixámos
antever atrás, o seu impacte visual não é – nem seria suposto, certamente,
ser – o mesmo que as letras, por exemplo, conseguem no festival de música
do Porto. O caso da mesa é particular. Por isso esta mesa nos chamou a
atenção, porque funciona ao contrário: no festival ficaria perdida; aqui é um
objecto encantador e poderoso. E voltamos à ideia de percepção e ao jogo
complexo que ela acarreta, com variáveis, conceitos, predisposições, filões e
níveis diversos de entendimento e de interpretação. O que é francamente
estimulante. Baralhar e voltar a dar é importante em arte. É uma forma de a
manter viva e orgânica. Os trabalhos de Feliciano conseguem-no,
especialmente na relação que propõem com um contexto operativo mais
vasto.
Isabel Nogueira