© Vasco Stocker Vilhena
Quando o vês, já estás investido nele. Objetos revisitados. Objetos que nunca vêm sem bagagem, pontos de referência, sinais de identificação. É como os compreendemos, por um lado, mas é também o que nos atrapalha. O que nos faz olhar. Histórias, histórias pessoais, afinidades partilhadas, como uma imagem ou uma memória musical. É um impulso curatorial que dá sentido e torna visíveis estes momentos fugazes e essenciais da nossa experiência.
Por vezes é preciso escutar, quando seria expectável olhar. Uma canção, por exemplo, é a soma de todas as escutas e de todas as atuações. Cada nova escuta, cada nova atuação, apenas aumenta as contradições que a canção terá de carregar. Untitled (trio of voices for (João) tenor, falsetto and ASMR – Buckley and Beckett’s Song to the Siren full on rotating platform 4:3 loading shimmer version) [2023], por exemplo, é o que anima esta história, com as suas inúmeras versões — apesar, ou talvez por causa da sua clareza estrutural. Até o próprio Tim Buckley a retrabalhou durante anos antes de a gravar numa versão final. Como se a sua própria canção fosse um cover de si mesma.
A sua gravação oferece aqui uma simultaneidade de experiências e transporta consigo todas as interpretações. Ajustamos o nosso encontro em relação ao que já ouvimos e amámos. A versão de Onofre reúne iterações binárias cantadas por um único intérprete. Reinterpretações simultâneas, registos diferentes - tenor, falsete, até ASMR. Apesar de não seguir estritamente o apelo e a resposta da letra da canção, é uma espécie de animação do puxa-empurra da canção. É como se os conflitos interiorizados da canção fossem exteriorizados e encarnados nas performances. Aqui Onofre apresenta-se como uma espécie de alquimista que tenta materializar vozes, que de outra forma se desvaneceriam.
Trabalhamos sob o pressuposto de que a obra de arte reúne ideias, ou formas, ou materiais, ou uma combinação de tudo isso, em direção a uma resolução e a um todo unificado. Há um processo que junta todos estes ingredientes e algumas das suas qualidades inerentes são sacrificadas pelo caminho em prol de algo mais ou menos substancial. Mas e se começássemos a pensar na obra como uma noção suspensa na qual os elementos são de facto reunidos, mas não se resolvem totalmente? Ou seja, a obra é um local de disjunção, adiamento e tensão. Um tipo de dissonância cognitiva em que o que se vê não é necessariamente o que se obtém. A obra é um conjunto provisório de possibilidades que nunca se mantêm juntas o tempo suficiente para resolver os elementos postos em jogo.
Parecendo uma prática profundamente conceptual, o trabalho de Onofre procura soluções materiais e espaciais. Nunca é abstrato. No entanto, as conjunções só fazem sentido de acordo com os termos de referência que o artista estabelece. Desta forma, Onofre cria objetos segundo uma lógica própria. Em cada caso, cada obra parte de princípios fundamentais e reinventa modos de perceção.
Objetos formados por breves frases de Miles Davis. A respiração que dá forma ao espaço. Um objeto que fala de um acontecimento, de uma breve passagem do tempo, de um movimento. De algo que se cala sem darmos por isso. Um objeto residual ao acontecimento, um objeto deixado para trás. Untitled (It’s About That Time Corner Piece) [2022-2023] revisita a sua encarnação anterior, acrescentando novas camadas de complexidade à peça anterior em vidro soprado. Cada frase ou explosão de som assume agora as suas próprias dimensões discretas. Cada uma delas está selada, como se para prender a própria respiração que as criou. É impossível não pensar na Belle Haleine, Eau de Voilette [1920-21] de Duchamp. Agora, estes golpes de som silencioso configuram-se (aleatoriamente?) num canto. O que é que as peças de canto têm? O encontro tenso de planos e uma resistência às convenções de exposição? E não há como não pensar em Beuys, Flavin...
Mas não pense muito, porque as alusões são apenas suavemente sugeridas. E, como tantas vezes acontece com o trabalho de Onofre, resultam de um ato de tradução do qual — crucialmente — não há regresso possível à fonte original. Miles está inteiramente dentro da formação destes objetos, mas ao mesmo tempo temos de recorrer a memórias herdadas, ou ao que pensamos que nos lembramos, para o “ouvir” de novo.
Há sempre tradução em ação, ou talvez se possa chamar-lhe um ato de transubstanciação. Os materiais mudam através da suspensão da descrença. Pense-se em A Promise of a Sculpture [2012], onde o objeto é definido contratualmente, mas oferecido num estado de adiamento perpétuo. Ou Declaration of Human Rights and an image of beauty converted into binary code (key version), [2014-2015]. O código binário será suficientemente estável, mas existirá a possibilidade de reversão? Talvez seja a “imagem da beleza” que sempre procuramos que, ironicamente, complica a codificação? Talvez a imagem seja outra promessa adiada...?
Grande parte do trabalho de Onofre coloca objetos à nossa frente contra todas as evidências e conhecimento prévio. Há um momento, por exemplo, quando posicionados ao lado da Box sized DIE [2007-], no qual tudo o que se vê é a autoridade formal da escultura e já não se consegue ouvir o que se passa no interior. Isso faz-nos olhar com mais atenção. O espectador pode estar numa posição privilegiada, mas essa localização produz ansiedades de perceção. Barbary Falcon (in awe of) [2023] é uma encarnação desse posicionamento desestabilizado que tantas das obras de Onofre geram. Sentimo-nos momentaneamente perdidos. Onde nos poderemos colocar para nos envolvermos com o trabalho? É um enigma histórico da arte. Por exemplo, nas paisagens arqui-românticas de Caspar David Friedrich, olhamos o observador. É impossível saber de que ponto de vista o quadro foi pintado. Estamos simultaneamente dentro dele e a lutar para estabelecer o ponto de vista instável da perceção — dois lugares (ou mais) ao mesmo tempo.
Barbary Falcon (in awe of) vai mais longe. Não se limita a seguir o movimento da criatura, mas tenta também enquadrar a perceção da ave. O falcão peregrino tem duas fóveas em cada olho, oferecendo acuidade visual tanto a curta distância como a distâncias improváveis. Não se pode imaginar o quê ou como ela vê. Talvez seja como olhar através de lentes micro e macro ao mesmo tempo. Como se a ave habitasse dois planos de perceção em simultâneo.
O olho da lente a seguir o olho. Onofre estabelece uma subjetividade particular para este processo percetivo. Há uma configuração de ecrãs que reforça as noções de vigilância, enquanto uma disposição de ecrãs invoca um panótico. Onde é que o espetador se poderá posicionar? Imagens horizontais, historicamente identificadas como os planos de perceção, foram contrapostas às verticais. (Talvez só desde que andamos a fazer scroll no Instagram é que reinvestimos tanto na imagem vertical, e de forma tão completa que o início do século XXI pode ainda vir a revelar-se a era da imagem vertical). Barbary Falcon (in awe of) coloca questões de perceção e de como uma imagem é construída. Pergunta como vemos o impercetível.
Muitas vezes com Onofre, o que se vê é apenas parte da história. Ele invoca sempre um tipo diferente de evidência. Tudo faz sentido para aquele momento, tal como o experimentamos. Temos de confiar nos nossos olhos para ver o que acreditamos ver. Mas a obra está montada para resistir à nossa sobredeterminação e permanece inatingível numa tensão de opostos ou contrastes — contradições que, neste espaço construído, não são contradições de todo. Há sempre uma tensão entre a superfície das coisas e o que se passa por baixo. (Sempre quisemos que alguém nos mostrasse o que se passa por baixo...)
Andrew Renton
Londres, Outubro 2023