Em 1959, Jean Rouch realizou o filme La Pyramide Humaine. Situado entre a ficção e o documentário, Rouch propõe, pelas suas próprias palavras, uma “experiência” – provocar a interacção entre dois grupos de estudantes da Costa do Marfim (um branco e outro negro) – sendo, para este realizador etnógrafo, a observação do relacionamento humano a chave para a abordagem das mais pertinentes questões politicas, sociais e raciais.
Este filme, precursor do Cinéma Vérité, muitas vezes esquecido na filmografia de Rouch, serviu de ponto de partida a Filipa César (Porto, 1975) para o seu último projecto. Convidada em finais de 2007 a fazer uma residência artística no Israeli Center for Digital Art em Holon, propôs um projecto semelhante, adaptado ao contexto local. Colocou-se na mesma posição de Rouch: a de um instigador que capta em filme as reacções e emoções das suas personagens, lançando a questão relevante se estas personagens são ou não actores. Em vez de estudantes brancos e negros, a artista juntou estudantes israelitas árabes e hebreus de três escolas de cinema existentes em Israel: Almanar Film School, em Taibe; Telaviv University, Department of Film and Television, em Telaviv; e Sapir Academic College, Department of Film and TV, em Sederot. Após assistirem à projecção do filme, discutem-no. Questionam o papel do cinema, do realizador, as posições de cada um e, desconstroem mesmo o dispositivo cinematográfico ali accionado, realçando as diferenças entre a experiência de Rouch e a de César. Progressivamente, uma conversa sobre cinema é deslocada para um debate sobre Israel e a Palestina, sobre colonialismo e linguagem, culminando na questão da intervenção exterior (neste caso europeia encarnada na pessoa da Filipa César).
O trabalho que a artista tem vindo a produzir desenvolve-se no sentido de uma investigação sobre a natureza humana e a sua visualização através do olhar (oculto ou não) de uma câmara de filmar. Esta natureza é explorada em situações tão distintas como a espera numa estação de comboios (Berlim Zoo, 2001-2003), como no contar de histórias de resistência política (Le Passeur, 2008). Mais do que o discurso que proferem, são os silêncios que ganham maior relevância nesta caracterização. Esta especificidade é uma vez mais demonstrada em The Four Chambered Heart (falado em hebraico e legendado posteriormente em inglês). A escolha recorrente do reaction shot, como mecanismo de caracterização dos intervenientes, fragmenta os depoimentos, isolando cada personagem na sua posição.
Há cada vez mais nos seus filmes uma visão utópica do papel do cinema (e da arte). Um dos alunos afirma, a certa altura, que “um filme não pode mudar o mundo”. Ao propor projectos como estes, César aspira que a arte pode, no entanto, ter um papel activo em tal discussão.