© Vasco Stocker Vilhena
Fazer Primeiro, Pensar Depois
Para Fernão Cruz, a arte e a vida são inseparáveis. O artista lisboeta de 28 anos explora imaginativamente as suas próprias experiências de vida para comentar a condição humana. Ao longo dos últimos cinco anos, numa série de exposições teatrais nas quais tem vindo a apresentar pinturas poéticas, esculturas e instalações que exploram questões pessoais, traumas e desejos, o artista criou um corpo de trabalho complexo que o colocou no caminho para a sua exposição mais abrangente até à data, INSONE na Cristina Guerra Contemporary Art.
O livro de Cruz, Stretching can be easy, fornece um guião para compreender a profundidade e o desenvolvimento dos seus trabalhos psicanalíticos. Autopublicada como uma edição print-on-demand em 2018, a monografia de 268 páginas documenta candidamente o seu quotidiano no estúdio produzindo as suas pinturas e esculturas, assim como a sua residência artística na China e as exposições individuais em Lisboa que lançaram a sua carreira. Compilada a partir das suas próprias fotografias, a publicação expõe o seu processo DIY para fazer esculturas lúdicas com papel, fita adesiva e gesso, ao mesmo tempo que oferece uma perspetiva sobre uma mudança gradual de uma pintura com temas figurativos para telas mais abstratas, ainda que simbólicas.
A sua forma idiossincrática de trabalhar foi apresentada pela primeira vez na exposição individual de 2018, Long Story Short, na Balcony Contemporary Art Gallery, onde apresentou pinturas em grande escala de abstrações em camadas, juntamente com representações figurativas de um ferro de engomar e uma metralhadora. As obras de parede foram justapostas com esculturas feitas à mão que representavam pernas a crescer a partir de uma rocha e um cabo e ficha elétrica gigantes, juntamente com montagens que combinavam habilmente pinturas mais pequenas com escadas, botas e malas sobre um chão revestido a cartão e fita-cola. Brincando com o olhar e a mente do espectador, a exposição criou uma narrativa animada a partir de elementos simultaneamente teóricos e referenciais.
A sua exposição individual de 2019 na Balcony, The White Goodbye: o que entra pelos olhos e sai pelas mãos, foi um projeto offsite realizado em salas que apenas eram iluminadas com luz natural. Incluindo dezenas de esculturas brancas surreais feitas de esferovite moldada à mão e coberta com gesso, a exposição assombrosa comemorava a morte do seu querido avô — com a criação de esculturas monumentais e a sua exibição num cenário semelhante a um cemitério ou jardim, uma forma catártica de o artista lidar com o seu luto.
Em 2021, duas exposições individuais com curadoria em centros de arte célebres trouxeram um nível ainda maior de invenção — e um reconhecimento muito mais alargado — às obras distintivas do artista. Em Quarto Blindado, com curadoria de Marta Mestre, no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, construiu uma dimensão onírica permeada de referências pessoais inspirada por peças do acervo eclético do centro. As esculturas em pasta de papel, gesso e madeira foram influenciadas pelas esculturas africanas da coleção e as pinturas a preto e branco sobre tela, debruadas com tecidos coloridos, recriaram ilustrações da história de Peter Pan, do escritor escocês James Matthew Barrie, sobre um rapaz fictício que se recusava a crescer. Com peças figurativas moldadas a partir de partes do corpo de membros da sua família e esculturas curiosas, como uma cobra azul deslizante e um macaco a subir uma escada, expostas sobre um chão amarelo canário, os objetos dramáticos e a instalação teatral criaram um cenário espiritualmente carregado.
A segunda exposição, Biting Dust, foi comissariada por Leonor Nazaré no Museu Calouste Gulbenkian. Apresentando dez pinturas narrativas e vinte esculturas arquetípicas (na sua maioria bronzes) especialmente criadas para a exposição, as obras metafóricas foram apresentadas em dois espaços distintos ligados por uma passagem escura. As pinturas representavam um homem em queda num palco, uma estrada que conduzia a um destino desconhecido e uma parede de tijolo coberta de serpentes, que funcionava como uma porta entreaberta para a sala com as peças escultóricas. Entre as esculturas, destacam-se a figura de gesso de um homem idoso sentado num banco enquanto um grande cisne de gesso voa com um manto verdadeiro nas suas garras e uma coroa construída em cartão, fundida em bronze, assente num plinto rotulado com o nome e a data de nascimento do artista, 1995. Reflexões sobre a vida, a morte, a perda e o declínio, estas obras poéticas apresentavam-se como atores alegóricos de uma peça de teatro autorreferencial.
Assim chegamos a INSONE, a mais dinâmica e psicologicamente reveladora instalação de pinturas e esculturas criada por este artista inovador. Explorando o seu estado mental e físico, estas vinte e uma pinturas abstratas e singular escultura figurativa criam uma constelação de obras de arte conceptualmente ligadas ao corpo do artista. Cruz intitulou o grupo de pinturas Cérebro, e refere-se à escultura como Órfão. As pinturas são paisagens internas — refletem os pensamentos interiores e os sentimentos físicos do artista, transpostos em telas. A escultura representa o corpo do artista (a pessoa que fez as pinturas) e as pinturas incorporam a atividade cerebral que tem lugar nesta figura aparentemente morta ou sonhadora.
Ainda que as suas pinturas figurativas anteriores tinham sido influenciadas pelas obras de Paula Rego, Francis Bacon e Leon Kossoff, nas suas telas abstratas mais recentes adivinha-se um parentesco com Sigmar Polke, Albert Oehlen e Laura Owens. As pinturas não foram feitas uma a uma, várias foram pintadas em simultâneo — camada a camada, passando de uma para a outra. São primas, irmãs — partes intercambiáveis da constelação. O processo de criação foi aditivo, nunca subtrativo; se era necessário fazer uma alteração, acrescentava-se mais tinta. Foram pintadas de forma improvisada, ao estilo do jazz ou do bebop, em que uma ação com a tinta ou com o pincel era rapidamente respondida por uma reação com outro tipo de marca, muitas vezes feita com outra ferramenta ou técnica, cor ou estrutura. O artista tinha de abdicar do controlo, deixar as mãos falarem. Tinha de entrar numa espécie de transe — fazer primeiro, pensar depois.
A pintura Constelação Quebrada (Cérebro) revela a forma como Cruz experimenta com os meios mais minimalistas. Uma série de linhas pretas é adicionada à tela para significar uma rede quebrada, uma falha no sistema. De seguida, produz o padrão do chão pontilhado aplicando tinta em plástico bolha e pressionando-o sobre a tela. Finalmente, cria sombras para dar uma dimensão ilusionista à imagem, fazendo-a parecer mais real, e adiciona áreas cinzentas para tornar essa realidade menos clara.
Vómito (Cérebro) pode representar uma reação mental ao adoecimento do corpo, mas os títulos das obras surgiram após a ação de pintar. Os títulos exprimem estados vividos pelo artista e aquilo que ele vê agora na tela, mas não o que lhe passou pela cabeça quando estava a pintá-la. Por exemplo, Mosca no Olho (Cérebro) sugere uma visão desfocada, que se adequa à natureza difusa da abstração apresentada, mas também evoca, de forma experimental, uma espécie de linha escovada à maneira de Brice Marden, sobreposta por derrames e gotas de tinta expressionistas, com manchas de pinceladas ricas em impasto preto à maneira de Laura Owens, o que contribui para o aspeto desfocado de tudo o que está por baixo — a ideia de uma mosca no olho.
Cruz pintou camada sobre camada sobre camada. Depois de aplicada uma camada, era feita outra, normalmente em oposição. Tal como Georges Mathieu, outro artista que Cruz admira, a ação era frequentemente performativa. Em Areia nas minhas articulações (Cérebro), Cruz faz os rabiscos para trás e para a frente aplicando a tinta diretamente do tubo — um método utilizado por Mathieu (e que era também uma técnica de pintura utilizada por Vincent van Gogh, outro artista que pintava com emoção).
Quando chegava a altura de parar, Cruz começava outra pintura ou acrescentava outra camada a um quadro já em curso. Na criação da série, o artista não tinha como objetivo ser delicado, mas sim procurar a diferença, uma metamorfose dentro de uma constelação de pinturas. A obra Enxame (Cérebro) ganha vida de forma magnífica através de uma composição de camadas contrastantes de linhas, grelhas, pontos e cores. Max Ernst, ao falar sobre as suas famosas pinturas em frottage — feitas com decalques de soalhos de madeira áspera — disse que se sentia como uma testemunha da criação da sua própria obra, que é o que Cruz é aqui. Entretanto, divergindo dessa abordagem, em Gruta (Cérebro), o artista usa o fundo cinzento produzido com o plástico bolha como ponto de partida para pintar à mão pontos maiores em padrões agrupados para simular as bolhas sobre grelhas em camadas de cores vivas.
A escultura, Órfão, tem um estilo completamente diferente. É um retrato realista do artista num cenário assombroso. Feita a partir de digitalizações reais do corpo nu de Cruz, foi impressa digitalmente a uma escala 1:1, em partes diferentes mas perfeitamente fundidas e depois revestidas com cinza cinzenta. Como uma das figuras petrificadas de Pompeia, o seu corpo é progressivamente desfeito por pombas — mesmo quando segura um pedaço de pão, o alimento preferido das aves, na sua mão estendida. As pombas vêm as pinturas enquanto comem a carne do artista, absorvendo os seus medos e fobias.
As pinturas e esculturas da exposição devem ser vistas como uma gesamtkunstwerk, uma obra de arte total, e não apenas como obras de arte individuais. A exposição é uma ópera, concebida como uma obra completa com diferentes elementos que se juntam para contar uma história cativante. O insone nunca pode descansar, assim como o artista, que está sempre a criar.
Paul Laster
Nova Iorque, Novembro 2023