IMAGO FORENSIS
a meta-fotografia como cenário de um crime
As fotografias de Edgar Martins (Évora, 1977 ) vão para além da mera imagem e do referente ao qual estão ancoradas. Por se tornarem reflexivas e autocríticas, saem do âmbito do puramente fotográfico sem abdicarem, todavia, da sua essência. Podemos considerá-las num terreno híbrido, próximas da pintura pela ideia de tableaux e pela importância da composição, do cinema (plateaux) ou até mesmo da escultura pela forma como se assumem como imagens-objectos. Esta última característica torna-as como personagens de uma certa narrativa que toca o quase-absurdo ou non-sense e que nos lembra os ready-made dadaístas ou surrealistas. Os elementos do insólito presentes nas imagens (onde quase nunca aparecem humanos ou animais) atestam esta teoria e ajudam a estabelecer uma ideia de distância face ao observador. Este é colocado numa situação de desconfiança perante aquilo que vê, mas que a ela se rende por uma espécie de temporária suspensão da descrença (Coleridge), colocando questões: - Será este um local real ou fabricado pelo artista? Estaremos nós numa espécie de mundo F for Fake?
No que diz respeito à sua contemporaneidade, estas imagens correspondem aquilo que G. Lipovetsky vaticinou como a era da cultura ecrã na qual as imagens se podem definir por três grandes categorias que vão desde a imagem excesso, à imagem-multiplex e à imagem-distância, jogando na lógica dos efeitos especiais, numa estilística quase barroca, simulacral, hiper-real, na qual o ecrã tudo invade. As imagens de Edgar Martins são, assim, o cenário de um crime, no qual a realidade é a vítima que todos estão a tentar investigar como, quando e quem a assassinou (à semelhança de um jogo antigo de seu nome Cluedo). Para além desta função de especialista forense, o artista é, igualmente, um arqueólogo visual que traz, à luz do dia, achados e ruínas do contemporâneo.
A teatralidade e artificialidade destes registos, oscilando entre o real e o imaginário, aproxima-as à noção do fantástico numa certa estranheza familiar que atribui suspense ao episódio que nos é colocado à frente. Não são, assim, imagens aleatórias, escolhidas ao acaso, mas provêm da idealização conceptual do artista que, à semelhança de um cientista, estuda cuidadosa e previamente o arranjo dos elementos que são colocados numa ordem compositiva, altamente elaborada.
Numa tradição que se alia à fotografia topográfica, os lugares de Edgar Martins são lugares que não o são, povoados de significantes flutuantes, isto é lugares abertos a uma multiplicidade de sentidos, a uma possibilidade infinita que não se contém nos limites físicos da imagem. O espírito desoculta, assim a própria estrutura do mundo, por vezes em excessos de significação e de forma a melhor compreendê-lo. A obra de arte torna-se assim uma espécie de linguagem à qual acedemos à realidade e reinventamos numa espécie de remake. Desta forma, a fixidez é apenas aparente e devedora do facto de uma das funções da fotografia ser o de cristalizar o tempo e o mundo. De resto, elas imprimem, pelas dúvidas que suscitam e pelas associações que nos trazem, uma dinâmica de pensamento que as coloca em movimento, fazendonos reflectir sobre o mundo que nos rodeia.
Carla de Utra Mendes