Vanitas: reminiscência e transitoriedade
O título da exposição de Christian Andersson, What has yet to take shape will protect me, coloca-nos perante uma tensão permanente entre diversos registos de uma memória em constante actualização, por vezes trespassada por uma aura de melancolia, e a projecção desses registos no fluxo temporal a que somos sujeitos, enquanto seres no tempo e, deste modo, na transitoriedade do que nos é presente. Uma das séries expostas intitulada Cache é exemplar desse processo que pode ser compreendido como uma metodologia de edição, ou de montagem, que Andersson desenvolve, e que é estrutural no seu trabalho. O artista trabalha esta série a partir de uma analogia entre um dos tipos de memórias desenvolvidas para um computador a, cache, que é caracterizada por um acesso imediato ao armazenamento de instruções ou dados usados com mais frequência, e a complexidade dos diferentes tipos de memória humana. Como por exemplo a memória implícita (localizada no inconsciente) ou a memória explícita e consciente. Partindo deste princípio, o artista introduz-nos num processo de estratificação da imagem que, num primeiro vislumbre, parece ser uma colagem ou uma sobreposição, mas é uma construção em camadas separadas espacialmente por planos de acrílico transparente. Ou seja, entre cada fragmento existe um espaço, e assim uma subtil distensão temporal que sujeita o olhar do observador a uma permanente reconstrução, num processo de reconfiguração e edição que antecipa uma provável forma final, e que se encontra num fluxo transitório constante que remete para o título da exposição.
Esta série de obras representa uma relação dialéctica entre imagens de diferentes tempos históricos, como por exemplo a figura da deusa da vitória, da mitologia grega, Nike tendo como enquadramento um cenário de ficção científica; mas também a escultura de Michelangelo Buonarroti, Hercules e Cacus sobre uma paisagem de um turbilhão de nuvens atribuída à descolagem de uma das naves da missão espacial Apollo, da década de 1960. Ou ainda, numa construção quase cinematográfica, dá corpo à ilusão óptica criada por Escher (Maurits Cornelis Escher, 1898-1972), apropriando-se da imagem do desenho Drawing Hands, 1948, em repetição, sobreposição e em transparência, montada em posições diferenciadas, entre a espessura de três camadas de acrílico, alterando assim a percepção do desenho original. A justaposição das duas imagens semelhantes, cria uma réplica aparentemente idêntica à imagem em primeiro plano, mas diferente na sua dimensão expandida. Esta relação na montagem, pode ser lida como uma alusão à utopia da repetição histórica dos acontecimentos, mas inexoravelmente perdida porque essa repetição a acontecer, será sempre num momento do tempo diverso do anterior. Neste cruzamento entre referências históricas, imagens e signos, provenientes de um arquivo do artista aparentemente aleatório (random), prevalecem duas categorias que se contaminam sem se fundirem: o imaginário que nos é comum e presente, e o correlato histórico da experiência humana. Na primeira destas categorias reconhecemos uma ligação estreita à representação do corpo, gestual e carnal, como um corpo rubro, e recortado, cujos braços denotam o derradeiro momento da sua criação. A segunda categoria, inscreve um questionamento sobre a expressão do conhecimento humano plasmada na ciência, na técnica, e nos seus diversos dispositivos, como instrumentos de medida, naves espaciais, câmaras de refrigeração utilizadas na medicina e na biologia, ou arquitecturas e representações utópicas. Na obra de Christian Andersson, a integração de dispositivos mecânicos, matemáticos, lumínicos ou vítreos relacionados com a reprodução de imagens constitui uma parte importante do espectro da sua linguagem plástica e conceptual. Estes dispositivos são trabalhados no sentido de nos sujeitar a uma reconfiguração da nossa percepção entre a tridimensionalidade e as duas dimensões de um plano, que se torna uma imagem como simulacro de si mesma, relembrando Baudrillard.
Este acontecimento, contingente e disruptivo, cria uma maior tensão física e espacial quando é experimentada na observação das obras escultóricas da exposição. Como por exemplo na instalação Primer, em que uma máquina, uma impressora comum foi manipulada pelas mãos do artista e se encontra assente sobre um espelho negro. Por um lado parece estar em suspensão, mas por outro lado transforma-se num objecto paradoxal, porque a sua forma se encontra visualmente duplicada integrando no espelhamento o espaço da sala e assim o trânsito do corpo do espectador. A memória do objecto de uso, de matriz duchampiana, sofre uma transmutação, e presentifica-se como um corpo mecânico/animal, híbrido e marcado pela acção humana, de onde pode eclodir qualquer coisa visceral ou, pelo contrário, esta corporalidade, agora indefinida, está também sujeita à acção de um outro corpo que lhe é exterior. A modificação deste objecto verifica-se de facto na alteração da percepção do espectador, e na presença, nem sempre visível de mãos e de braços, e de gestos que percorrem toda a exposição, por vezes sugestionados ou intuídos.
A obra Marrow, uma escultura em gesso de escala humana, é uma cópia executada a partir da obra original, uma escultura funerária do gótico tardio, a Transi de René de Chalon, da Igreja de Saint Etienne (Bar-le-Duc) França. É uma obra que representa um memento mori, a transição de um corpo entre o estado de cadáver e o seu desaparecimento pela redução ao pó, aludindo à fugacidade da vida, do devir, a que todos somos sujeitos. Andersson procedeu a uma subtil intervenção sobre a cópia do original, nas seguintes duas acções: a primeira, ao adicionar um pequeno tesseracto ao braço que se ergue, um hypercubo que se estende na quarta dimensão; a segunda, ao projectar a imagem desta figura geométrica na parede. Esta projecção é uma transformação estética no âmbito das dimensões do espaço e do tempo, enquanto representação da morte ou do regresso à vida, presentificada pelo gesto e pelo olhar atento da figura. A posição da lâmpada dentro da cabeça constrói, pela projecção, um objecto imaterial, a sombra de um braço que agora apresenta na sua mão um cubo, a forma original rebatida para a tridimensionalidade. A escultura é deste modo composta pelo corpo e pela sua projecção, com uma dimensão cinemática, uma possibilidade de tromp-l’oeil, que pode transmitir na sua totalidade um sentimento melancólico, rememorando Durer, ou Kiefer. Mas também uma outra alusão, esta de matriz antropológica, na dimensão contingente e imprecisa da nossa presença física no espaço partilhado e das consequentes acções que lhe são inerentes. Estas nem sempre visíveis, como metáfora das relações humanas em todos os aspectos que lhe são constitutivos e que são imperceptíveis do ponto de vista material, e espacial, num repto às teorias de Edward T. Hall, plasmadas no seu livro The Hidden Dimension.
Nesta relação das imagens do corpo com imagens, por vezes, espectrais ou outras que não identificamos imediatamente, Christian Andersson joga com a nossa memória vernacular onde aparentemente identificamos acontecimentos e situações que nos são familiares. Contudo, não é assim, sejam estas imagens trabalhadas em duas ou três dimensões, estas, constituem-se como meta-narrativas ancoradas em fragmentos editados e reconstruídos como se fossem esculturas. Como podemos observar na obra Atomizer uma escultura em que o seu suporte vertical é também o eixo de sustentação da figura, representada na fotografia, composta por braços e mãos que enfrentam uma força, talvez uma tensão centrífuga. Ou, por oposição, remete para um exercício de equilíbrio sobre uma vara de dança, mas em que o reconhecimento de um corpo é a presença desse corpo que ainda resiste, como uma natureza-morta, no limite da sua representação sobre uma imagem de fundo que é uma visão estereoscópica do universo.
Um céu imenso, infinito e profundo, propõe-nos uma subtil reflexão sobre a ideia de paisagem, sem ficar refém das dimensões do espaço e do tempo, em que o corpo, como possibilidade ontológica é, ainda, uma interrogação.
João Silvério