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Double Jeu
30

 

Janeiro

 

2024
9

 

Março

 

2024
André Cepeda - Double Jeu
André Cepeda - Double Jeu
André Cepeda - Double Jeu

 

André Cepeda - Double Jeu
André Cepeda - Double Jeu
André Cepeda - Double Jeu
André Cepeda - Double Jeu
André Cepeda - Double Jeu

© Vasco Stocker Vilhena


INADEQUAÇÕES


As cores, as linhas de fuga e as próprias linhas da geometria moderna são confrontadas com a sua própria alteração, com tudo o que as torna inadequadas ao seu propósito original. Os espaços interiores são degradados ou requalificados pelo seu uso vernacular. Os projetos urbanísticos são desqualificados pela realidade do seu futuro. Um mundo de inadequação aflora, muitas vezes inqualificável. As silhuetas perdem-se nas perspetivas que as rodeiam, os olhares pesados teimam em desprender-se do claro-escuro.


A qualidade específica do trabalho de André Cepeda é talvez esta obstinação em dar forma ao que perdeu precisamente a sua qualidade, ou que, pelo menos, dificilmente pode ser descrito. Imagens precisas, rigorosamente organizadas e, dir-se-ia, arquitetadas, abrem um mundo que já não o é. E, sem dúvida, é necessário um grande cuidado para que o espaço aberto pelo enquadramento fotográfico realce tão metodicamente um objeto fugidio que lhe é em tudo antagónico. Suspender uma maquete, na nitidez da sua geometria espacial, na exposição, é precisamente pôr em tensão estes dois polos da forma da obra e do que ela mostra. E, ao fazê-lo, duplica a representação.


Deste modo, a obra suscita uma preocupação genuína com a duplicação da modernidade matemática e da modernidade social, com todas as suas falhas, fissuras e choques, com todos os seus vestígios e sequelas. E o rigor das imagens ajuda a evitar a complacência com a ruína ou o voyeurismo miserabilista. As costas estão viradas, os olhos fechados, os outros olham-se com um ar de cansaço ou de desafio. Toda uma gama antropológica de presenças humanas ecoa o vazio dos lugares e o enigma das suas perspetivas fechadas ou da sua degradação. Algo nos remete para a proximidade arrepiante e empática dos bairros delapidados de Pedro Costa.


Uma modernidade modelada pela violência económica contemporânea ressoa assim com a modernidade anterior à revolução industrial glosada por Baudelaire, cujo poema “O Cisne”, incluído em 1857 na obra As Flores do Mal, combina o tema dos grandes estaleiros parisienses lançados na altura pelo Prefeito da Polícia de Paris, com o do exílio. O exílio daqueles que já não reconhecem os lugares por onde vagueiam, comparado com o exílio para a metrópole dos nativos colonizados:


Já não existe o velho Paris é outra (as cidades

Ah! Mudam mais depressa que a alma dos mortais);

[…]

Penso também na preta, já tísica e magra,

Chapinhando na lama e procurando às cegas,

Os coqueiros ausentes da grandiosa África,

Para lá da imensa muralha da névoa; […]1


Esta modernidade decetiva, tal como a velha imagem de um Atlas fazendo uma careta de esforço numa das fotografias, tem dificuldade em suportar o peso esmagador dos seus próprios alicerces. A obra de André Cepeda é inteiramente construída por estas desproporções e desalinhamentos, que ligam a experiência do espaço quotidiano às convulsões da história global. Do Portugal contemporâneo, sujeito à violência da corrupção e à intromissão de potências estrangeiras, ao Portugal colonial na origem da modernidade no século XVI; do Portugal triunfante do século XVIII ao Portugal protofascista de meados do século XX, toma forma uma história da Europa, que é

também contada, fora do mundo rural, pela história das cidades e pelo futuro do seu planeamento urbano.


A obra de André Cepeda — filha da «Revolução dos Cravos» que, em meados da década de 1970 e no mesmo ato, pôs fim à ditadura e ao colonialismo português — é, de facto e através desta história, também um veículo dessa saudade, misto de esperança e melancolia que, durante séculos, esteve associada à cultura portuguesa. É uma obra que empresta a sua singular tonalidade estética a uma modernidade dececionante que não conhece fronteiras.


Em 1979, Michel Foucault escreveu sobre as esperanças e desilusões da revolução iraniana:


As pessoas revoltam-se, é um facto; e é assim que a subjetividade entra na história e lhe dá vida. Ninguém é obrigado a pensar que estas vozes confusas cantam melhor do que outras e dizem toda a verdade. Basta que elas existam e que sejam contrariadas por todos aqueles que se esforçam por silenciá-las, para que haja um sentido em escutá-las e procurar o que elas querem dizer. Todos os desencantos da história nada farão para mudar isso. 2


É esta última frase que devemos ter presente, para que o nosso olhar sobre a obra de Cepeda não conduza à complacência e ao desencanto, mas permaneça, pelo próprio rigor da sua obra, virado para um horizonte de possibilidades ainda por explorar. Porque apreender, na medida em que as suas imagens o fazem, a impossível adequação do presente é de facto — no mínimo — abrir o nosso espaço mental à necessidade crítica de outros lugares sociais aos quais ainda é possível dar forma.



Christiane Vollaire

Paris, Janeiro 2024




1 Baudelaire, As Flores do Mal, trad. Fernando Pinto do Amaral, Assírio & Alvim, 1992, p.221.

2 No original, « On se soulève, c’est un fait ; et c’est par là que la subjectivité s’introduit dans l’histoire et lui donne son souffle. Nul n’est tenu de trouver que ces voix confuses chantent mieux que les autres et disent le fin fond du vrai. Il suffit qu’elles existent, et qu’elles aient contre elles tout ce qui s’acharne à les faire taire, pour qu’il y ait un sens à les écouter et à chercher ce qu’elles veulent dire. Tous les désenchantements de l’histoire n’y feront rien. ? Michel Foucault, « Inutile de se soulever ? », in Dits et écrits, t.II, Gallimard, 2001, p. 793.

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